2018/04/13

CAFÉ DEMAIS NÃO FAZ BEM


(Um drama nervoso com muita cafeína)
Um monólogo
Cenário: Uma cafeteria no Centro da cidade.



É claro que ela reparou em você quando entramos, ela até te desejou uma boa tarde. Como ela é uma fútil que diz isso prá todos? Há formas e formas de se desejar uma boa tarde a alguém. Para você ela foi mais gentil, carinhosa, e aquele sorriso não me parecia um sorriso profissional, mais parecia um sorriso de alegria, satisfação, de ter visto você aqui. Agora tente sentar-se à mesa sem chamar a atenção de ninguém e, por favor, por favor, peça o seu café que eu peço o meu. Sossega, para de tremer e enxugar o suor das mãos nas pernas das calças. Repita comigo: - Está tudo bem, está tudo sobre controle, sou o senhor absoluto de mim mesmo e nada pode me abalar, há em volta de mim uma muralha que me isola de todos os problemas desse mundo! - Vamos lá repita! Repita como se isso um mantra fosse! Ora, deixe de ser chorão, é claro que você consegue memorizar isso tudo, vamos lá, repita. Diabo, fale baixo, repita só prá você, como se estivesse rezando. Chega a garçonete, simpática e solícita, como sempre. - Olá! Mais um café, por favor. Se gosto do café daqui? Tenho certeza de que esse é o melhor café deste lado da existência... Se um sou pastor, religioso ou filósofo? Não, isso foi só uma brincadeira da minha parte. O que o um amigo aqui tem? Nada. Acho que está com alguma coisa grudada na palma da mão. Sim, vou tomar o café com adoçante, obrigado. Se ele vai tomar café também? Não sei. Talvez ele queira antes ir ao toalete tirar seja lá o que for que o está incomodando antes de pedir alguma coisa. Isso, então depois você vem aqui na mesa outra vez. Ela estava sorrindo para você, mas quando viu essas mãos se movimentando debaixo da mesa, acho que se assustou. O que foi que te falei sobre esse tique nervoso de ficar secando as mãos nas calças? Assim você não vai conseguir nada mesmo, e me faça o favor de parar de engolir em seco, me dá aflição esse pomo-de-adão subindo e descendo... Volta a garçonete - Olá outra vez...! Sim, vou aceitar mais café. Nossa isso está parecendo um daqueles filmes americanos em que a garçonete aparece servindo café nas mesas, só falta uma torta de maçã. Não, não, não só estou falando no sentido figurado, não gosto de tortas, muito menos gosto de maçãs, vivo fugindo do pecado..., não, como lhe disse antes não sou um pastor. Onde está o meu amigo? Ele foi ao toalete tentar tirar alguma coisa que estava grudada em suas mãos. Ah! Sim, sim, ele encostou numa parede vindo para cá e alguma coisa colou em suas mãos. Nossa, que suspiro mais profundo esse. Alívio? Por que alívio? Ok vamos deixar isso para lá então. Olhe, ele já está vindo. A moça se retira de volta ao balcão. Não começa com isso, não faça cena, segura essas lágrimas, e não esfregue as mãos nas calças. Ela não fugiu quando você chegou, ela só foi buscar outro café para mim. Claro que eu não agüento mais tomar tanto café assim. Ainda vou ter um enfarto na minha gastrite. Sentido figurado, não existe enfarto em gastrites! Olha, ela está vindo ai. Peça um café, chocolate, cerveja, formicida, diabo-verde; eu sei que você não bebe cerveja – se eu tiver que repetir a palavra “sentido figurado” outra vez, vou matar um, e não fique balançando a cabeça e dando sinal para eu falar baixo, porque eu estou falando baixo. Pare de tremer! - Olá. Não, não me canso de dizer olá, acho olá uma palavra tão simpática, aliás, em matéria de simpatia, olá, só perde para você. Sim, é claro que eu vou tomar outra xícara de café. Meu estômago? Ora, estômago forte é o meu. O quê? Não, onde você ouviu falar nisso? Enfarto de estômago não existe, não existe. Sim, é por isso que me enveneno, digo, bebo tanto café assim. Ô rapaz, responde prá moça, você quer uma xícara de café ou não? Que tosse é essa? Cara, você está ficando vermelho, acho melhor você voltar ao toalete e passar uma água no rosto. Vá lá, vá lá. - Olá você! Achou isso engraçado? Acho que ouvi essa besteira na TV, não tenho cá muita certeza. Como?, se meu amigo está melhor? Está sim. Ele quase não se machucou com o tropeção na mesa. Quê? Uns cacos de louças? Aquilo não é nada para ele... Sangue, que sangue? Besteira. Ele sangra muito mais que isso quando se barbeia... Não! Graças a Deus ele não é hemofílico... Você acha mesmo que ele está demorando tanto assim no toalete?  Ok, então vou aceitar mais uma xicrinha de cafezinho dessa vez com leitinho. Se eu tomar mais uma xícara de café, eu morro. O amigo volta. - Preste bem atenção ao que vou te falar: pára de tremer, não interessa se ela está vindo ai, não me interessa se ela está te olhando de um jeito esquisito, não me interessa se ela está ao meu lado colocando mais uma xícara daquele amaldiçoado café na minha mesa, não me venha com a desculpa de que ela está aterrorizada, não me interessa se minhas mãos em seu pescoço estão te deixando sem ar. Pare de tossir e preste bem atenção ao que eu vou te dizer, vamos olhe para mim e pare de esbugalhar os olhos, ou você se declara para ela agora ou nunca mais vai tomar café comigo. Entendeu? Entendeu? Me diga logo se entendeu. Vamos, pisque duas vezes para sim e três para não! Não baba.

Interlúdio.

Dias depois...

- Como ela teve a coragem de te dizer isso? Eu que sempre fui tão gentil e educado. Eu que dizia olá toda vez que ela surgia feito uma aparição na minha frente com aquela bandeja cheia de xícaras e xícaras e xícaras e xícaras e xícaras de café...? Eu não estou nervoso! Como você pôde ouvir tudo e não me defender? Como você deixou que ela dissesse que eu sou violento? Eu não estou nervoso! Ora, não me venha com “essas marcas de dedos que eu deixei no seu pescoço”. Ela disse isso? Eu não estou nervoso! Ela disse que o meu vício por café vai me levar a cometer um crime e que a vítima ainda será você? E você quer eu não fique nervoso? Eu não estou nervoso! Você falou para ela que:

1.      Eu ia à cafeteria por sua causa?
2.      E que você ia à cafeteria por causa dela?
3.      E que por causa de vocês dois eu bebia tanto café?

Você falou isso para ela? Falou? Eu não estou nervoso! Para de balançar a cabeça desse jeito. Assim você me deixa nervoso! Que veia saltada, que veia saltada? Eu já disse que não estou nervoso! Já te falei que não existe enfarto de estômago, não existe, eu não estou nerv...


Apaga a luz

Cai o pano com estrondo


Nenhum comentário: