2011/05/31

A RECEITA


- Vamos ver o que é preciso para preparar um Crepe de banana e canela, abaixa esse som menina, não agüento mais ouvir essas músicas de emo; Rendimento, doze porções, quem é que vem mesmo aqui? – Ô Janina, quem é que vem pro jantar da Tia Joaninha?

- E eu que sei? – responde a filha que continua ouvindo música ainda mais alto.

- Bom, vou ter que ariscar. O tio e a tia do João, dois, meus vizinhos aqui do quinto andar, abaixa essa porcaria de música menina, assim não consigo calcular a receita do doce, são seis ou sete, já deu nove, eu, a Janina e o João, são doze... Ô meu Deus vou ter que dobrar a receita... Ingredientes: - duzentas e cinqüenta gramas de farinha de trigo, uma colher de chá de fermento em pó, duas colheres de chá de canela em pó e um pouco mais para servir, canela em pó..., ô deusmeu, quem é que alérgico a canela em pó?, é melhor descascar a canela...

- Descartar mãe, descartar – grita a filha da sala, ainda ouvindo musica em altíssimo volume.

- Dois ovos batidos, cento e vinte mililitros de leite, será que pode ser leite de soja?, o menino da vizinha tem alergia a lactose..., seis bananas grandes e maduras, será que devo usar essas que estão aqui já passadas? – Janina, vai na quitanda buscar banana pro doce?

Janina, agora finge que não escuta e continua dançando na sala.

- Vai com essa banana mesmo, duas colheres de sopa de açúcar cristal, cristal acabou, vai essa comum mesmo, uma pitada de sal, melhor não por sal, o João anda com a pressão muito alta, óleo vegetal, açúcar de confeiteiro para servir, besteira açúcar de confeiteiro, isso coisa de gente besta, suco de limão para servir. – Janina, ainda tem limão?

- Não mãe, mas pode usa vinagre, dá o mesmo efeito! – responde gritando sala, onde dança e pula em cima do sofá e dá piruetas no ar.

- Modo de preparo: Numa vasilha grande - Janina onde tá a bacia de ferver roupa?

- Tá com a Dona Chiquinha, emprestei hoje de manhã

- Peneire a farinha, o fermento e a canela - canela não - vou por noz-moscada, faça uma cova no centro e adicione os ovos, eu sabia que estava faltando alguma coisa!

- Janina, minha filha corre na Dona Chiquinha e pede uns “ovo” prá ela.

Janina sai correndo, deixa o som e alto e retorna trazendo os ovos. Volta à sala, aumenta ainda mais o volume do som e põe-se a pular cada vez mais alto do sofá para o chão aprimorando suas piruetas com saltos mortais.

- Bata a metade do leite até obter uma massa homogênea, adicione o leite restante e mexa bem – lê rebolando enquanto briga com a massa - amasse as bananas com o açúcar “comum” de cristal, e o sal, sal não, e junte-as à massa. Salpique um pedaço de papel-manteiga com o açúcar de confeiteiro, de confeiteiro não tem, vai esse mesmo...

Toca o telefone.

- Ô Janina minha filha atende esse telefone enquanto eu esquento óleo.

Janina não responde, o telefone continua a tocar.

- Aqueça um pouco de óleo numa frigideira, eliminando o excesso, e despeje nela massa suficiente para fazer um crepe de 12-18 cm de diâmetro, onde vou arrumar uma régua prá “midi” esse diabo de doce? – Janina atende esse telefone, eu já tô me perdendo toda nessa receita... – Ô Janina, você lembra quem é que tem alergia por canela? Atende esse telefone e diminui esse som menina..., salpique, afinal isso é doce ou salgado, não vou salpicar nada, o sal faz mal prá saúde do João, os crepes com um pouco mais de açúcar de confeiteiro, uma pitada de canela em pó e um pouco de suco de limão. Dobre cada crepe, mas que frescura de receita açúcar de confeito é tão doce como açúcar de dona de casa, oxente Janina, atende esse telefone que eu to ficando louca com tanto barulho!
O telefone não para de tocar, o som continua alto e “Janaina” só não responde por que caiu pela janela num de seus saltos mortais.
A festa foi cancelada, e o doce ia sair uma porcaria mesmo...

2011/05/27

O CRIME MISTERIOSO DO BANDIDO CRITERIOSO - TERCEIRO CAPÍTULO




(Barulho, vozes cantam parabéns para você, sons de buzinas, gritos, fogos de artifício, palmas)



(Porta batendo)

Eriberto da Costa – Maldição, assim não conseguirei analisar os dados desse caso. Como um homem pode trabalhar desse jeito? – Mais barulho ainda, agora som de copos quebrando, gritos de mulher, uma voz masculina gritando:

Voz masculina gritando – Chega, chega, basta, não agüento mais... (risos, mais buzinas, mais gritinhos femininos, outra vez parabéns pra você)

Eriberto da Costa – Desisto. Vou levar essa papelada prá casa, quem sabe lá eu consiga colocar meus pensamentos em ordem. Assim aproveito para fazer um curativo no furo da minha orelha.

(Som baixo de toc-toc)

Eriberto da Costa – Toc-toc, isso me remete a alguma mais importante ainda para eu fazer, mas o quê meu Deus, o quê?

(o toc-toc continua, mas agora mais alto)

(aumenta o barulho na sala ao lado)

(o toc-toc fica mais alto que o barulho ao lado)


Eriberto da Costa  - (som de uma tapa) Meu Deus, lembrei.


(som de gaveta sendo aberta)

Eriberto da Costa (desesperado) – Marcio me desculpe, me desculpe...

(Som de porta sendo aberta)

Entra Dr. Epiphanio Luzico

Dr. Epiphanio Luzico – Com quem você está falando Eriberto?

(Música de suspense)

Eriberto da Costa – Estou falando com o Marcio...

Dr. Epiphanio Luzico – (condescendente) - Eriberto, Eriberto, pare com essa bobagem de falar com o Márcio, você sabe, eu sei, Dona Sueli da Portaria sabe, que não existe nenhum Márcio dentro dessa gaveta, para de beber, não me diga que você estava na festinha de aniversário do Dr. Pompeu bebendo...

Eriberto da Costa - (gaguejando) – Mas Dr. Epiphanio o senhor já viu o Marcio meu marciano aqui na gaveta...

Dr. Epiphanio Luzico – (nervoso) Eriberto, cansei dessa palhaçada, agora chega, eu vou... (interrompido)

(som de porta sendo derrubada)

(Barulho, vozes cantam parabéns para você, sons de buzinas, gritos, fogos de artifício, palmas)


As pessoas da sala ao lado entram no escritório do Dr. Epiphanio Luzico cantando uma marchinha de carnaval...

(som de vidro quebrando e um tema de filme de ficção científica)

Eriberto da Costa (gritando desesperado) – O Márcio fugiu, o Márcio fugiu – vai repetindo em fade out.



Continua aqui

2011/05/26

A TESE

O Taco de baseball

O Imperialismo Norte-americano.

Ou

De como conseguiram transformar em acessório, quase ícone indispensável, a posse de um taco de basebol para defesa pessoal em caso de invasão de zumbis devoradores de cérebros, invasão extraterrestre ou simples assalto à residência.


- Que nada, ainda estou tonto só com o esforço para bolar o título. Agora não tenho idéia de que direção tomar. Olho para as minhas anotações e perco o fôlego. Veja aqui esse monte de lembretes, notas, rascunhos, recortes de jornais, revistas, cartas que os amigos me enviam... Não sei por onde começar a escrever... Aqui por exemplo, nesse recorte de jornal, veja só, um sujeito, ele destruiu o próprio computador com um taco. Enquanto os familiares tentavam conter sua fúria contra o aparelho, ele gritava que o computador dava-lhe ordens sub-reptícias para matar a mulher e os filhos. E olha que quase conseguiu... Depois a família dele quis acionar a justiça contra a loja que vendeu-lhe o taco. Mas você acha que vou usar isso na minha tese, acha? Outra matéria, e nem me pergunte onde arrumei isso, descreve como um skinhead satisfazia-se sexualmente com o dito taco... Penso que não acertei na minha escolha de defesa de tese... Esses americanos são uns psicopatas... Onde estava com a cabeça quando resolvi defender essa maldita tese? Sabia que há tacos de alumínio?

- Não...

- Pois é nem eu, para mim aquilo era feito de madeira torneada e pronto! Mas não, os “irmãos” do norte tinham que complicar, para eles nada pode ser simples. Eles tinham que complicar... Já não bastava o jogo ser abstruso...

- O quê?

-Abstruso é o mesmo que complicado!

- Ah! Depois são americanos que complicam tudo...

- Não obstante minhas dificuldades, os colegas de classe começaram a enviar perguntas, com se eu fosse um fanático, um expert em baseball. Leia aqui, aqui nesse papel amarelo, veja a pergunta desse sujeito. Deixa que eu leio, já que está na minha mão mesmo: - Como fazer a bola de baseball sair do estádio e conseguir passar por todas as Home Plates, fazendo o famoso Home Run?

- ??

- Pois é. Essa foi minha cara a ler esse papel. Eu que nem sei quantas bolas rolam num campo de futebol, fui me meter nessa encrenca! Tudo que eu queria escrever era sobre o desenvolvimento do objeto criado para o esporte que com o tempo passou a ser usado como arma de defesa e depois em ícone de uma cultura estrangeira invasora. Mas não, todos querem que eu explane sobre o esporte! Sobre o esporte. E eu lá sou homem de esporte? Eu sou um teórico do esporte. Eu não pratico esporte. Eu leio críticas sobre o esporte! Maldita hora que me meti nisso! Sabe o que é pior nesse encrenca toda? Sabe?

- Acho que você vai me contar de qualquer maneira, não vai?

- Pior que a minha solidão intelectual é a indigência de minhas amizades! – suspira. O pior, o que está me levando a desistir dessa tese é esse outro papelzinho aqui. Veja isso! Duvido que você entenda, mas dê uma olhada nisso. Veja se essa indagação ajuda em alguma coisa na defesa da minha tese?

- O que é Força Centrípeta sabendo-se que F = (m*V^2)/R, sendo m=massa, v= velocidade, R= raio da curva?

- Viu? Desisto dessa tese. – Joga todas as sua anotações pela janela, fazendo uma chuva de papeis picados caírem em direção à rua, deixando as crianças exultantes de alegria. – Desisto. Nunca deveria ter começado essa porcaria de Tese. Tô fora.

- Você nunca vai ser ninguém na vida mesmo! Essa já é o quê? A terceira Tese que você abandona?

-É sim. Mas um dia, eu hei de conseguir desenvolver um assunto que ninguém – diz contorcendo os dedos das mãos, e olhando para cima – ninguém conseguirá interferir, ninguém conseguirá entender, ninguém conseguirá me interromper... E nesse dia, nesse dia...

Toca a campainha e a enfermeira entra para trocar a frauda geriátrica dele.

- Seu Altamir, se continuar com essa agitação vou ser obrigada a sedar o senhor outra vez. O senhor tem que parar com essa mania de viver defendendo tese. Faça como o seu Gervásio que pensa que é Napoleão, arrume uma guerra, vá traçar planos para invadir Marte ou a Polônia, mas pára com essas sua teses. Olha só o estado do seu Carvalho aí ao seu lado. Toda noite nós o pegamos invadindo a biblioteca para pesquisar as bobagens que o senhor fala durante o dia. O seu Carvalho não tem mais idade para ficar escalando as estantes, um dia desses vamos encontrá-lo morto e a culpa será sua, só sua, pense nisso. – Diz isso enquanto acaba de passar talco nas suas nádegas irritadas pelas brotoejas. – Agora tome a sua sopinha e trate de ir para a caminha.

Ela dirige-se à porta do quarto para sair, mas antes vira-se e fala.

- Antes que o senhor resolva sair daqui às escondidas, já vou lhe avisando que achamos e já devolvemos o taco de baseball do seu neto.

Ela sai do quarto, mas ainda é possível escutá-la resmungar:

- Era só o que faltava esse velho gagá fazer, roubar os brinquedos do neto...

2011/05/25

TAQUICARDIA

saio de casa
quarenta minutos
de engarrafamento
taquicardia
no rádio
sex pistols
- my way
taquicardia
trânsito parado
taquicardia
mudo de estação
roubos-tragédias-mortes
taquicardia
mudo de estação
the clash
- rock to casbah
taquicardia
trânsito parado
taquicardia
motoqueiro caído no chão
(isso explica o trânsito parado
meus agradecimentos à CET por nada)
taquicardia
chego ao serviço
taquicardia
acendo o primeiro cigarro do dia
- falsa calma
no elevador
arranco alguns cabelos brancos
volta a taquicardia
assino o ponto
taquicardia o resto dia...

2011/05/24

O CRIME MISTERIOSO DO BANDIDO CRITERIOSO


Personagens:

Legina Herena – Pobre infeliz desde seu nascimento, por causa do pai que tinha sérios problemas na língua acabou registrada com o L trocado pelo R. Mulher insatisfeita que procura na rua o que não encontra em casa, e não encontra porque não tem.

Régio Campos D’Orvalho – Punguista que nas horas vagas lava carro nas ruas faz malabares nas esquinas e carnavalesco de fevereiro a fevereiro. Vale menos que aparenta.

Dr. Epiphanio Luzico – Delegado de policia, pai exemplar, marido exemplar, amante exemplar, colecionador de selos, moedas, orelhas e armas medievais.

Eriberto da Costa – Investigador e menino de recados do delegado Dr. Epiphanio Luzico.

CAPÍTULO 1



(música de suspense)

(Sons de passos, cadeira sendo arrastada)

(BG música árabe)





Dr. Epiphanio Luzico - Eriberto da Costa veja isso sobre a minha mesa, olhe com muita atenção, pense duas, três vezes antes de pronunciar alguma palavra de que possa vir a se arrepender.

(tosse e pigarro)

Eriberto da Costa – Dr. Epiphanio, isso, olhando assim tanto de lado como de cima e por baixo, me parece à primeira vista uma pirâmide do Egito antigo...

(soco na mesa)

Dr. Epiphanio Luzico – (nervoso) Eu lhe pedi para pensar antes de falar, eu lhe pedi somente isso. Estúpido, não por sua mãe, eu o poria na rua agora mesmo. Imbecil. Primeiro isso em suas mãos é uma “ré-pli-ca” de uma pirâmide, segundo é do Egito moderno e odiosamente mercantilista. Maldito capital, maldito Karl Marx & Engels! (bate outra vez como os punhos na mesa) (som de objetos caindo no chão). Eriberto, essa réplica foi encontrada junto ao corpo, essa é a quinta pirâmide que encontramos em uma cena de crime. Vamos acenda-me um cigarro.

(som de passos afastando-se)

Eriberto da Costa – Aqui está Doutor Epiphanio, da marca que o senhor gosta.
Dr. Epiphanio Luzico – Não se faça de rogado Eriberto, trate de começar a tragar, estou agoniado de vontade de fumar, só com muita fumaça começo a clarear as minhas idéias.

(sons de tragadas)

Dr. Epiphanio Luzico – Deixe-me ver as fotos. Sim, sim, sim aqui estão elas. Veja Eriberto, veja a posição dos corpos, veja aqui, aqui, uma pirâmide na testa de cada morto...

Eriberto da Costa – O que isso quer dizer doutor? Isso significa alguma coisa?

(Dr. Epiphanio bate com os punhos na mesa com mais força, mais objetos caem ao chão)


Dr. Epiphanio Luzico – Eriberto, se essas fotos bastassem para se desvendar um crime, para que existira policia? Mais uma pergunta e você vai para rua agora. Vamos, traga-me um conhaque, agora.

(som de líquido sendo derramado no copo)


Dr. Epiphanio Luzico – Vamos Eriberto, tome de um gole só, só assim meu cérebro funciona.

(toca o telefone)

Eriberto da Costa – Quem será doutor?

(outro soco na mesa)

Dr. Epiphanio Luzico – Eriberto!

(som de algo sendo jogado)

Eriberto da Costa – (grito doloroso) Por que doutor, por que o senhor me trata mal assim?

(o telefone continua tocando)

Dr. Epiphanio Luzico – Entenda de uma vez por toda! Quando o telefone toca você deve atendê-lo e nunca, entenda bem, nunca me pergunte que é!

(o telefone continua tocando)

Eriberto da Costa – Doutor é a sua senhora, ela quer saber se o senhor vai jantar em casa hoje.

Dr. Epiphanio Luzico – Que dia é hoje Eriberto?

Eriberto da Costa – Quarta-feira, dia sete, novembro, quarto dia de lua cheia, maré alta as vinte e três e cinqüenta e cinco minutos, netuno entra em Vênus em setenta e sete minutos, deu vaca na cabeça hoje...

Dr. Epiphanio Luzico – Então diga-lhe que não, não jantarei em casa hoje.

Eriberto da Costa - (som de telefone sendo desligado) e então doutor? De volta às pirâmides?

Dr. Epiphanio Luzico – Sim meu caro Eriberto, de volta às pirâmides e seus mistérios... Eriberto desça à rua, vá até a praia buscar-me um balde de areia, quem sabe banhando meus pés nela eu consiga desenvolver alguma idéia que se encaixe nesse mistério.Eriberto da Silva – Sim doutor, vou agora mesmo.

Dr. Epiphanio Luzico – Eriberto, faça-me outro favor, compre uns chicletes de hortelã não quero chegar em casa com mau-hálito! Ah! Minha Santa Agatha Christie, esqueci de mandar o Eriberto marcar a tatuagem de sereia que eu queria fazer nas costas! E Márcio, o marciano? Terá chegado são e salvo em seu rubro planeta?


(som de porta batendo)

(Música de suspense)



FIM DO CAPÍTULO I

Continua aqui




2011/05/23

CIDADE DE TRÊS PRAÇAS


- Já estou andando há horas e horas e não consigo encontrar meu carro.

Esta deve ser a qüinquagésima vez que ele repete isso.

– Estou andando por essa cidade, mas não consigo encontrar a droga do meu carro. Como é possível que numa cidadezinha deste tamanho com apenas três praças, um sujeito possa perder seu próprio carro?

Da primeira vez que ele falou “cidadezinha desse tamanho com apenas três praças”, os velhinhos sentados à mesa do bar onde ele pedia informação, não gostaram nem um pouco e sua reação não foi das mais simpáticas.

- Eu me lembro que deixei o carro numa curva onde três ruas e uma ferrovia faziam uma curva para a direita, não deve ser difícil para vocês me informarem onde fica localizada essa curva! – exasperava-se.

Como não conseguia nenhuma informação seguiu andando a esmo. Passou pelo prédio do correio, pela delegacia onde não ousava entrar para pedir mais informações, pois ao indagar dois policiais a respeito das ruas e do carro, pediram-lhe seus documentos e o do carro, mais disposto a prendê-lo do que a auxiliá-lo.
A tarde já estava no meio e o sol castigava-o de forma inclemente, o calor fazia sua camisa grudar no corpo, deixando uma má impressão que o tornava mais antipático à vista do moradores locais.
Entrou em um bar, pediu uma garrafa de água, aproximou-se de outros velhos – ele havia reparado que nessa cidadezinha só havia idosos, não vira um jovem sequer, aliás, nem escolas havia por ali – que ali estavam matando tempo e sem mais delongas foi perguntando se alguém havia visto seu carro.
Nada lhe responderam, pois achavam impossível alguém perder um carro, ou qualquer outra coisa naquela cidade.

- O que poderia esperar de uma cidade que só possui três praças e ninguém trabalha? – Vociferou enquanto saía do bar sob os olhares belicosos dos fregueses.

- Não posso perder tempo aqui, preciso ir embora, tenho que encontrar meu carro e sair daqui o quanto antes.

Seguiu pela avenida principal, ou assim pensou que fosse, já que aquela era a rua mais larga que havia ali. Seguiu até perceber que ela tornava-se uma ladeira.

- Lá do alto vou poder me localizar, de lá vou achar as três ruas que fazem uma curva para a direita junto com a ferrovia.

Uma vez lá no alto, tudo o que conseguiu ver foram as onipresentes três praças.

-Mas não é possível... – Murmurou coçando a cabeça. Olhou para céu, mais para ver a posição do sol do que para clamar por ajuda divina. A subida da ladeira o deixou mais suado e mal ajambrado que antes.

- Maldita cidade! Onde você escondeu o meu carro, onde? Preciso sair daqui, quero voltar para a minha casa, para minha mulher, para os meus filhos, cidade dos infernos deixe-me ir embora.
O que começara com uma explosão de frustração, terminara com um choro fraco e impotente...
Voltou pela mesma ladeira até chegar à avenida e por ela foi andando até chegar à praça central, feia, com poucas árvores raquíticas e sem folhas. Nela não havia igreja, nem bancos, nem pombos. Uma praça feia e sem sentido, tendo à sua direita e esquerda outras praças tão feias e tristes quanto ela, e que o sol só ajudava a piorar...
Cansado, suado e sujo, tudo o que ele queria era ir embora para a sua casa, tomar um banho e esquecer aquele pesadelo.

- Maldita cidade! – gritou outra vez com os punhos cerrados em direção ao céu – maldita, mil vezes maldita cidade.

O vendedor de pipoca que ouviu isso não gostou e xingou-o de alguma coisa que ele não entendeu e seguiu para o bar onde os velhos viam toda essa cena patética.
O pipoqueiro entrou, sentou numa mesa e começou a confabular com os presentes, entre uma conversa e outra olhavam para o sujeito que agora não parava mais de falar sozinho.

- Precisamos dar um jeito nisso. – Disse um.

- E tem que ser logo. – Emendou outro com um copo de café.

- Não precisamos ouvir isso o dia inteiro. – Falou o português dono do estabelecimento.

- Essa história de carro perdido no estacionamento? – Disse o mais velho deles enquanto cuspia um cuspe preto de mascador de tabaco. – Já não me impressiono com mais nada que ouço por aqui.

- Onde nessa cidade tem três ruas que fazem uma curva para a direita com uma linha de ferro? – Perguntou a galega esposa do dono do bar.

- Cala a boca mulher e volta lá prá trás do balcão.

Enquanto isso lá na praça central sob o sol escaldante, o sujeito andava de um lado para outro gesticulando os braços e xingando quem passasse por perto.

- Preciso lembrar onde estacionei meu carro, preciso sair daqui, essa cidade vai me enlouquecer – e olhando para o bar, gritou:

– O que vocês estão olhando? Devolvam meu carro que eu vou me embora daqui e juro nunca mais voltar, devolvam meu carro, me digam onde ele está e eu vou embora daqui –, e ajoelhando-se começa a chorar.

No bar os velhos voltam a falar.

- O que vocês acham...? – Pergunta o galego.

- Por que você pergunta isso? – Cuspiu o mascador de tabaco

- Não cuspa no chão – Gritou a galega de trás do balcão

- Não grita com os fregueses – Berrou o marido português.

- Parem de gritar um com o outro e vamos nos ater a situação daquele infeliz lá fora cozinhando os miolos no sol. – Manifestou-se o pipoqueiro.

- Vou telefonar para o Vadinho então. – Contemporizou o homem que ainda tomava café. – Mas ele não vai gostar e vai chegar enfezado aqui...

- Quando que o Vadinho não chega ou vive enfezado? – Retrucou o bebedor de café.

- Coitado do Seu Vadinho, com a vida que ele leva...- Comentou a mulher detrás do balcão arrumando as garrafas de cachaça na prateleira.

- Ifigênia, o que já lhe falei sobre se meter na conversa dos fregueses? – Vociferou o marido coçando os cabelos do peito.

- Tá certo, eu telefono pro Vadinho, mas telefono e vou me embora, não quero estar aqui prá ver a desgraça que vai dar. – Falou baixinho o mascador de tabaco.

Cuspindo um cuspe preto de tabaco, o velho mais se arrastou do que caminhou até o telefone sobre o balcão. Discou lentamente os números, como se eles fluíssem à sua memória um a um. Ouviu-se um breve murmúrio e logo desligou.
Tornou a sentar-se e disse:

- Ele falou que vai buscar o carro e já vem, é só o tempo de eu tomar uma saideira. Não tenho mais idade para ver essas coisas... – emborcou o copinho de cachaça que estava sobre a mesa, levantou-se e foi embora, da porta do bar deu uma olhada para o infeliz na praça, balançou a cabeça e foi-se sem se despedir de ninguém.
 
 
 

CONSTATAÇÃO

Um dia hei de escrever coisas que toquem o coração das pessoas, nem que seja numa lâmina...

2011/05/19

BATALHAS

Cada Sísifo com sua pedra
O faxineiro do prédio
Luta diariamente
A luta inglória contra
O cocô dos pombos nas
Escadarias
E corrimões
Ele limpa
Os pombos sujam
Ele limpa
Os pombos sujam
Assim é o seu dia
Essa a sua eterna maldição
E minha diversão
Fumo enquanto ele sofre
Fumo e filosofo
Fumo e os pombos cagam
Fumo e ele volta a lavar os degraus
Sísifo e sua pedra...

2011/05/18

SOBRE GAVIÕES E BEM-TE-VIS

Enquanto tomo banho olho pela janela e vejo no prédio em frente, no telhado, um casal – suponho que seja um casal, nada me confirma, nem aliança nas garras ou mesmo um crachá - de gaviões que devoram filhotes de bem-te-vi que todo verão chocam seus ovos ali.

Divirto-me vendo como esses pequenos pássaros são tão bravos na defesa de suas crias. É impressionante a coragem deles batendo nos gaviões, voando, furiosos, como se fossem pilotos Kamikazes jogando-se suicidas ora sobre as costas, ora sob suas asas, fazendo com que a ave fuja “com o rabo entre as pernas” para longe de seus ninhos.

Mas assim como há o dia da caça, o que vi de minha janela foi o dia do caçador (terei invertido o antigo dito popular?).

Enquanto me demorava no banho, para preocupação e desgosto dos que se preocupam com as reservas de água do planeta, via o lauto banquete dos falconiformes (vide mais na Wikipédia), a cada bicada era uma pena que voava.

Lá embaixo, na rua a vida seguia tranqüilamente, as pessoas indo e vindo com suas vidas enquanto três andares acima – o drama - toda uma geração de bem-te-vis era devorada.

De toda essa desgraça só sobraram as carcaças, que logo seriam devoradas pelos urubus, os eternos lixeiros da natureza, e umas poucas penas, que espalhadas pelo vento, acabaram presas em galhos de árvores e espalhadas pelas ruas...

Não sofri pelo genocídio que testemunhei– suporá o leitor que não tenho coração, mas afirmo que estará enganado em tal suposição - afinal nesse mundo de Deus, há mais bem-te-vis que gaviões...

Terminado o longo banho, saí para rua e acabei esquecendo tudo isso, afinal cada um trava a sua batalha pessoal a cada dia, ora ganhando, ora...

ODE AOS OITENTA





Enfim os oitenta

Me vejo no espelho e nada me contenta
Olho para os pés e vejo que mijei neles

Outra vez

Fecho o zíper da calça e prendo o saco
Mordo os lábio para não gritar
E constato que ia sair sem a dentadura

Outra vez

Lá embaixo pessoas me esperam
Já nem lembro para quê
E nem lembro mais quem são

Outra vez

Há! São os meu filhos, ou creio que sejam!
Minhas mãos tremem, mas não de emoção...
Pela cara esqueci os comprimidos.

Outra vez

Procuro pelos óculos e rezo
Espero que não tenha dado a descarga neles
Outra vez

E eles querem comemorar
O quê?



2011/05/17

CONSTATAÇÃO

Já encontrei moedas nos bolsos de roupas velhas
Sapatos embaixo de móveis
Amigos desaparecidos
Revistas e livros antigos
Uma promissória
Mas o tempo perdido...

O Memorioso.

Vadinho O Velho Memorioso escreveu isso e mais isso

2011/05/16

VAQUINAÇÕES

ela ao telefone
sua voz furando meus tímpanos
(tão sensíveis...)
ela
fala
faz suas “vaquinações”
diabólicas
e
caras
ela ao telefone
ri
(Nosferato não riria assim)
ela banca a difícil
(mas sabemos como é fácil)
ela ri
como quem dá o preço
ela ao telefone
planeja
barganha
faz isso
faz isso
e mais isso
(isso não! nem pensar
mais que ri que exclama!
ela vaquina demais ao telefone
tudo sim!
mas isso?
só depois de casar
ri
(coçando o dedo anelar)
e
olha para nós satisfeita
essa vaca ao telefone
o outono lhe chegou
e ela nãopercebeu...

CONSTATAÇÃO

Ainda acabarei meus dias como um vegetal hidrófobo!

2011/05/12

De Pombos

(texto antigo)

…passado o calor da batalha, que batalha me perguntam? Qualquer uma de qualquer guerra, guerras as temos de mãos cheias, então escolham uma, abram um mapa e de olhos fechados estiquem o dedo indicador e pousem sobre ele, com certeza ali há de haver uma guerra.

Corpos espalhados pelos campos, fumaça, o cheiro acre de pólvora, abutres voando em círculo no céu nublado. Sim, nublado o céu fica melhor nesse texto, aliás, vamos colocar um chuvisco fino e um frio chegando junto com o entardecer.

(Ótimo, agora o quadro ficou digno de Brueghel.)

Aproximando um pouco a nossa câmera, veremos entre os mortos uns poucos sobreviventes que gemem, choram e soluçam. Acho bárbaro ver um soldado moribundo chorando e soluçando, seria melhor ainda se um deles tivesse à mão uma foto. Seja lá a foto da mãe, da filha, da namorada, ainda virgem (desculpem a minha licença poética, não resisti a uma namorada virgem!) ou quem sabe a foto do cachorro... (nada mais comovente que a foto do fiel totó penso ouvir um suspira na platéia)

Vemos então que um dos soldados, arrastando-se na lama, não falei antes que havia muita lama? Desculpem, mas há muita lama, uma lamaçal dos infernos (?). Voltemos ao soldado que empastelado de lodo, sujo e com as lágrimas desenhando trilhas de brancura nas faces (essa foi uma pontada no coração, não foi?) segura, abraça e ampara um irmão de armas, tenta incutir-lhe um pouco de esperança na chegada de reforços, na ajuda médica, afinal esperança de que algo suja para tirar-lhe dali.

O soldado mais ferido tenta falar algo, esboçar um sorriso, mas a tosse aguda o impede. (nesse momento quase ouvimos uma música triste tocar)

- (tosse)

Desesperado o amigo, sim nessa hora todos tornam-se amigos e irmão, graceja e diz que tudo isso vai passar e logo-logo estarão rindo disso ele ia ver.

Enfim escurece, a chuva fina engrossa e o frio piora. O primeiro soldado acende um cigarro e o divide com o companheiro que piora a olhos vistos. Ao longe um trovão, sacode a terra, ou seria um tiro de canhão? Assustam-se, o segundo soldado que piora, engasgasse com a fumaça...

Escurece e exaustos, enfim dormem...

O amanhecer os encontra abraçados, trêmulos de frio e cobertos de lama que já começa a secar. O primeiro soldado olha para o céu e em voz alta agradece a Deus por ter sobrevivido a essa noite, ele sorri e chama o companheiro agonizante para uma prece de ação de graças.

(Fosse isso um filme e eu o diretor, nesse momento mandaria a produção soltar uns mil pombos, para aumentar a dramaticidade do momento, mas como não sou, segue a história.)

- Viu? Eu não disse que tudo daria certo? Aqui estamos nós vivinhos, e tenho certeza que logo o socorro chegará. Olhe lá!

Com esforço ele levanta a cabeça do moribundo e vira (penso ouvir um crec?) para o outro lado, onde se avista no horizonte uma fila de soldados chegando.

- Olhe, olhe, olhe, a ajuda está chegando, veja são os nossos homens chegando – diz chorando de emoção incontida.

Arrebatado ele salta e começa a gritar, gritar com toda a força de seus pulmões.

(Lembram-se dos pombos que falei acima? Se eles estivessem nessa história, agora voariam assustados com os gritos)

- Hei, hei, heeeeeeeeeeeeeeeeeeeiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

(Entra outra uma trilha sonora, de preferência do Ênio Morricone, triste de fazer partir um coração de pedra)

Fim perguntarão vocês?

Um Happy End?

- Não!

(Olhem que beleza seria ter os pombos nessa história, agora que o fim aproxima-se, eles voariam para o horizonte, que lindo seria!)

Mas sigamos...

Ele decepcionado, arrasado, triste, vê o batalhão virar para direita (ou esquerda, tanto faz, o importante é que seguiram para outra direção) deixa-se cair como um pacote abandonado sobre o corpo inerme e já frio do companheiro morto. (Sim ele morreu com o pescoço quebrado)

Sentado sobre o cadáver, ele se entrega, rende-se à sua desgraça. Olha para cima e vê o dia clarear, o solo secar e mais um dia perdido começar.

Sobre sua cabeça os pombos voltam a revoar.

Bruscamente ele ergue-se de sobre a carcaça enlameada e com uma pistola na mão põe-se a disparar contra as pobres e inocentes aves columbinas...

E então do nada surge em fade-in, o...







T H E   E N D

2011/05/11

O (QUASE) MEMORIALISTA


O carpete está coalhado de garrafas de conhaque e cerveja, a mesa coberta de folhas e lenços de papel, os olhos injetados de sangue, os cabelos desalinhados, o cinzeiro transbordante de bitucas de cigarro. Blocos de anotações espalhados pela sala testemunham seu esforço em pesquisar fatos, datas, nomes, endereços...
Maldita hora em que encasquetou que seria um memorialista. Jurou que iria passar a limpo sua vida pregressa, daria nome aos bois, tudo o que lembrasse – pouco até agora – seria impresso. Suas memórias dariam – segundo ele:

– Pelo menos oito volumes de aproximadamente oitocentas páginas...

Boquirroto, espalhou aos quatro ventos seu projeto. Ameaçou pessoas, chantageou cunhados e primos; advertiu antigas namoradas que não pouparia detalhes por mínimos que fossem. Recebeu telefonemas ameaçadores, cartas anônimas – embora reconhecesse a caligrafia do missivista...

- Nada nem ninguém me impedira de escrever tudo T U D O !

O prazo de entrega dos originais está terminando e até agora isso:

I

...e nós três subíamos o morro de madrugada, uma hora, duas da manhã, e nada acontecia, não tinha perigo, além, é claro, de tropeçar numa pedra ou num degrau e se machucar. Vinho vagabundo na cabeça, girando, girando.
Chegávamos lá em cima, na casa, bem de mansinho, sem fazer barulho, com os sapatos nas mãos para não acordar a mãe dela, e forrando o chão com qualquer trapo, caímos mortos e só acordando com o sol brilhando sobre as águas do cais do porto, que sempre nos remetia a um samba antigo:

- ”Alvorada, lá no morro, que beleza, ninguém chora não há tristeza, ninguém sente dissabor, sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo... ’ – que cantávamos com ressaca e desafinados.

Aquela luz arrebentando as nossas retinas...!
Então, acordados, ou quase, descíamos e íamos trabalhar, com um café ralo no estômago e gosto de corrimão de bordel de terceira categoria na boca pastosa.
A vida era boa, éramos jovens e nada parecia ter prazo de validade, tudo parecia ser para sempre, mas como hoje sabemos:

- ”O pra sempre, sempre acaba...”

A vida nos levou por outros descaminhos; ela, sofrendo um desencanto amoroso entregou-se à fé, tornou-se religiosa, sumiu no mundo como missionária, o outro, por suas opções, morreu na flor da juventude e eu envelheci com as memórias e as lembranças desse um tempo.
Ultimamente tenho revisto as pessoas daquela época, nos reunimos, bebemos bons vinhos, e conversamos com calma, pausadamente, hoje já não temos aquela urgência de antes, queremos até, que o tempo comece a ficar um pouco mais lento, e nos recordamos desses amigos perdidos pelo mundo.
De certa forma, estamos naquele ponto em que, inconscientemente começamos a fazer um balanço de vida, contabilizamos as perdas e ganhos, olhamos para trás e nos sentimos vitoriosos, afinal ainda estamos realmente vivos!

II

Éramos jovens e por seguinte, vítimas de leituras, mais precisamente “O Encontro Marcado”, do Fernando Sabino, então um dia, com a cabeça cheia de vapores de vinhos vagabundos, combinamos nos encontrar dali a quinze anos, no mesmo lugar, às 19h00 min dali há quinze anos, no mesmo lugar, às 19hquela época...), assinamos até uma ata para sacralizar o acordo, e fizemos tim-tim com mais vinho vagabundo (NOTA: pesquisar a marca).
Mas pelos motivos acima descritos, nunca voltamos a nos ver.
Pergunto-me, hoje, como teria sido o encontro?
Sinceramente não faço a menor idéia, mas pelo andar da carruagem à época, creio que não teria sido um grande encontro, duro de admitir, mas com o tempo nosso ego teria sido um grande empecilho à nossa amizade. Olhando em perspectiva, acho que foi muito bem assim, guardo boas lembranças e quase nenhuma mágoa.
Sinto pelas mortes, tantos as físicas como as espirituais, pelas encruzilhadas, pelas trilhas pedregosas que escolhemos, mas a vida é assim mesmo, muitas perdas e ganhos me vieram depois disso!



Ontem pela manhã o síndico do prédio junto com bombeiros e uma ex-namorada apavorada arrombaram a porta de seu apartamento e o encontraram em profundo coma alcoólico, junto ao notebook esfacelado esse bilhete manuscrito:



O projeto – que seria longo - pára por aqui, pois as memórias foram-se assim como se foram aqueles dias...



Suspiros de alívio foram ouvidos em muitos lares e bares.



2011/05/10

NOSSO TIPO DE DOR

Dores.

Quantas e tantas, que nos afligem e fustigam e nos arrebentam, aos poucos, aos pedaços, deixando fatias de nós pelos caminhos.

A dor de ser ignorado. De ser tornado invisível, inaudível, e a pior para quem escreve, ser ilegível, indecifrável, indecodificável, ser deixado de lado, para lá, ali, em qualquer lugar, menos em frente aos olhos.

Saber que nossas linhas, páginas, brochuras, livros, ficam enfeitando uma estante, cheia de pó. Que nossos texto na tela do computador é deletado, depositado na lixeira e no fim do dia, excluído de vez.

Tanto para ser dito, e tanto sendo ignorado.

A dor fica cada dia mais dolorida, e mais ainda teimamos em escrever, obstinamos em colocar caractere após caractere numa folha, numa tela, num tomo, opúsculo após opúsculo, dia após dia, teimamos, e teimamos...

Dizem-nos as pessoas que lhe faltam tempo para ler, que não gostam de ler, que não entendem o queremos dizer, e se afundam em diz-que-diz-que das revistas de fofocas, nas telenovelas da vida, que há anos, para não afastar a “audiência”, repisam as mesmas fórmulas de mocinhas apaixonadas por galãs ricos, amores difíceis tornados possíveis no último capítulo (sempre às sextas-feiras com reprises no sábado), uma alquimia barata e burra para consumidores burros e baratos.

Dores.

Todas elas nos afligem por sermos pedantes, arrogantes, soberbos, por nos acharmos “Prometeus hodiernos”, salvadores desses rebanhos de ovelhas idiotas, que teimam, não sei se por estupidez mórbida ou por preguiça de pensar, e que, para nossa vingança, acabarão seus dias sendo sacrificadas no altar de sua própria ignorância. Seguidos de seus descendentes, pois cheguei à triste conclusão que a falta de inteligência tornou-se genética.

Dores.

Tantos e tantos contornos. Mas pensando bem até que a nossa é “menos pior”, afinal temos a nossa capacidade de ver, ler e apreender o que acontece à nossa volta.

Só erraremos por vontade própria (ou praga de mãe)!

EDUCAÇÃO, PARA QUÊ?


Triste o nosso trópico, triste.

Tento não ser pessimista, mas vejam essa experiência com crianças.

Estava esses dias na Feira da Cidadania, em São Vicente, num stand, não interessa qual, conversando com crianças.

Entre as muitas que lá estavam, uma me chamou mais a atenção.

Ela, não declinarei o nome, com treze anos, falava, com certo orgulho, que não gostava de ler.

Não lia nada, absolutamente nada. Nem quando o professor assim mandava, para fazer algum trabalho. Se muito, passava os olhos num livro ou outro em dias de prova. E mesmo assim, copiaria o que pudesse dos colegas.

Fiquei besta com isso.

Perguntei-lhe se nunca nenhum livro lhe havia chamado a atenção, um livro de histórias, mesmo história da carochinha...

Em certo momento, perguntei-lhe:

- Você já leu Drummond?

- Leudrummond? Não, nunca ouvi falar nesse cara. - Disse olhando-me nos olhos, como se eu tivesse lhe indagado se já havia visto um marciano.

Expliquei-lhe, entre as gargalhadas dos presentes, (sim, há testemunhas) que não era “Leudrummond”, mas Drummond, Carlos Drummond de Andrade.

Mas debalde.

Ela não entendia nada. Nada de leitura, nada das gargalhadas. Mudei o rumo da “prosa”.

Quis saber o que ela planejava para o seu futuro (pra quê?).

Respondeu, outra vez, toda orgulhosa (pobre, pobre criatura!):

- Faxineira de shopping ou diarista!

A princípio engasguei.

- Como alguém em sã consciência quereria ser faxineira de shopping?

- Para ver gente bonita por perto toda hora! - Respondeu horrorizada com a minha ignorância.

Como fazê-la ver que isso não era sonho? (quando não um pesadelo?) Que ser faxineira de shopping era mais uma triste conseqüência que uma opção?

Expliquei-lhe, já nervoso e desiludido, que se ela não estudasse, se empenhasse em ser melhor, em se destacar dos seus colegas, ela não seria nada na vida. Que sem estudo, sem um pouco que fosse de cultura, educação, sua vida não seria nada gloriosa...

Que em última instância, o conhecimento era o único bem que ninguém poderia tirar, que o saber não era um relógio, um tênis de marca que poderia ser roubado, que diferente da sua juventude, ele não se perderia ou acabaria...

Quando ela me interrompe com sua displicente arrogância:

- Então vou para Miami casar com um homem bonito e rico!

Mais gargalhadas!

Passei as mãos no rosto, cocei os cabelos, respirei fundo, e tornei à minha arenga. Tentei, já a essa altura dos acontecimentos, inutilmente, fazer-lhe ver que nenhum homem “bonito & rico” se interessaria por uma mulher feia e burra, sem um mínimo de conhecimento, modos e educação.

Pondo as mãos na cintura, ajustou a mini-saia, suja e surrada, e jogando os cabelos para trás, falou cheia de soberba estupidez:


- Hiii tio, que papo! Se nada der certo, então viro mulher de traficante.

Virou-se e saiu, rebolando e arrastando as chinelas.

Que fiz eu?

Acendi o meu charuto, velho amigo e companheiro dessas desditas.







Texto antigo que encontrei aqui no computador

Coisa rápida, ligeira...

Aquela mocinha simpática...


Era sempre risonha, simpática, mas não era muito dada não, aliás, diziam, era cara pra diabo.

Os pobres meninos das redondezas viviam de olhos fundos, meio corcundas, alguns, diziam as mães preocupadas:


- Quase tuberculosos!


E ela passava todas as tardes, com a sua saia justinha, aquele sorriso perfeito, aquelas pernas torneadas, naqueles saltos altíssimos...

Os meninos babando corriam para casa.

ENCONTRO NO CENTRO DA CIDADE

Encontram-se no centro da cidade por puro acaso, trabalhavam juntos no mesmo edifício, eram colegas de profissão, um trabalha no térreo do edifício, o outro no quarto andar. Raramente se vêem, desencontram-se diariamente a dezesseis anos.

Sabe-se o que acontece um com o outro via conversas e fofocas.

Na semana passada morreu a esposa de um deles.

Climão!

O que dizer para ele? Como consolá-lo? Há que se fazer algo, dizer algo, mas o quê?

Passa o tempo, os dias, e dá-se por esquecido o acontecimento. Ele, viúvo, curte o nojo por sete dias (assim diz a Lei).

De volta ao trabalho, tudo segue como antes. Alguns o abraçam sem palavras, outros de cabeça baixa, apertam-lhe o braço, outros ainda, dão-lhe um tapinha nas costa, e a vida segue em frente.

Carimbos, arquivos, papeis, papeis e mais papeis, e a dor, senão esquecida, é carimbada e arquivada.

Esquecida num armário ou gaveta qualquer...

Mas eis que passado isso, como dizia no primeiro parágrafo, eles se encontram no centro da cidade. O primeiro vem andando pela rua olhando para o céu, talvez procurando no azul celeste a imagem da falecida, o segundo, procurando um meio de “desencontrá-lo”, mas o inevitável acontece, e eles se trombam.

- Olá. Como você está reagindo... - sem graça - eu soube o que aconteceu. Você me desculpe, mas eu não presto para nada nessas horas. Sou um arrematado inútil, e acabo falando o que não devo...

- Que é isso? - diz sorrindo sinceramente - Estou superando, e o que mais você poderia dizer que não o óbvio? Nada nos consola numa hora dessas... Prefiro assim. Não se preocupe.

- Já almoçou - arrependeu-se na hora da pergunta, se ele ainda não tivesse almoçado, iria convidá-lo, e isso é última coisa que ele desejaria nessa hora, preferiria abrir um canal no dente a ter que te-lo por companhia numa hora dessas.

- Não obrigado, já comi alguma coisinha ali - e aponta para o indefinido, haja vista a quantidade de restaurantes, bares e lanchonetes que há ali nas redondezas. - E você, já voltando para o prédio?

- Sim. Aproveitei para dar um pulo nas lojas, mas já estou voltando.

Os dois ficaram se olhando, sem mais assunto. As pessoas passavam com pressa em volta deles, o céu escurecia.

- Vai chover.

- É capaz.

O segundo dá um pigarro, revira a sacola cheia de compras, e de lá puxa um pacote com charutos, recém-comprados, abre e tira um.

Meio sem graça, oferece-lhe.

Emocionado, o primeiro, sem palavras abraça-o fortemente, e dá-lhe sinceros tapinhas nas costas. Com os olhos brilhando, talvez de emoção, talvez de gratidão, diz-lhe:

- Obrigado, obrigado... - sorrindo - Será que posso fumar no banco?

- Não, acho que não...

- Então vou guardar e fumar em casa no Natal. Obrigado, muito obrigado mesmo.

Sorrindo foi embora, olhando para o charuto, que girava nos dedos, levando-o de vez em quando ao nariz.

Já não olhava mais para o céu.

2011/05/09

CONSTATAÇÃO

Sou um circo ambulante de homem só (só não engulo espada)!

ASSIM SOU

Texto de apresentação para o Jornal O DEBATE (que não vingou)




Sou um birrento, mal-humorado, às vezes teimoso e ranzinza, mas daí me chamarem de pessimista?

Besteira, sou um homem muito bem informado, formado nas artes realísticas da mais real realidade sólida e concreta, ou seja, não me iludo, nem me deixo enganar ou levar por sonhos e fantasias, afinal tudo é Maya!

Maya*!

Pessimista eu?

O que é ser pessimista? Não crer? Nada (mais) esperar? Desde pequeno que não me iludo mais. Papai Noel não existe, por favor, guardem para si mesmos essa expressão de espanto, limpem a baba que escorre de suas bocas boquiabertas, acrescento ainda, não existe Coelhinho da Páscoa**, e os últimos que tive o desprazer de ver, graças a Deus, morreram lá na minha chácara, depois de detonarem toda a minha plantação.

Já foram tarde!

Não, não sou pessimista, simplesmente não espero mais nada de ninguém, nada de lugar nenhum, nem mais olho para o chão procurando moedas, nem perscrutar os céus a procura de anjos.

Não sou bom nem mau, sou eu mesmo, e isso já me basta e me cansa deveras sê-lo ou ser-me. (O Sr. Alexandre Costa, meu copy desk, que corrija ou não).

Tenho cá no meio peito, onde pulsa o meu segundo fígado, minhas opiniões, tantas são que posso trocá-las por algo melhor. Mas duvido que surja mais primorosa mercadoria...

Minhas apreciações trombam constantemente com o Sr. Alexandre Costa, aquele otimista de ***, aquele cripto-Poliana, sempre com aquele sorriso de plantão na cara. Mas o choque cria fagulhas, que por fim produz o fogo, fogo esse que se não nos foi dado por Prometeus, serve para aquecer os fins de semana em que nos reunimos para escrever nos blogs, produzir nossas rádionovelas e outros projetos fadados ao fracasso, financeiro, financeiro vejam bem, esse mundo não está preparado para tanta genialidade.

Azar o dele!

Cresse eu em outra vida, tentaria a sorte em outra encarnação!

Mas esse texto está ficando metafísico demais para meu sofisticado bom gosto, desagradando-me, vamos mudar o rumo dessa prosa.

Esse sou, o prazer é só de vocês.

Nada mais tenho a dizer, tudo já foi dito.

Passem bem, se quiserem!







* Ilusão

** Também não creio em duendes, fadas e outras besteiras new age.

*** Não posso dizer o que significa, mas vocês entendem.

“Eu te leio, tu me lês”

Pergunto-me sempre e sempre qual a razão de continuar a escrever. Não encontrando uma resposta, continuo na labuta.

Aborreço-me, e muito, com tal mister.

Quem escreve, ou pinta, compõe, ou produz qualquer tipo de arte, o faz para mostrar, levar a público, à luz, não para ser ignorado.

Afinal se nos expomos assim é para sermos visto!

Como dói sermos ignorados...

Perpetro meus textos nesse blog, envio postagem aos amigos (?), aos conhecidos, aos desafetos e nada, nada, nada.

Dos poucos que ainda procuro e a quem indago a respeito da postagem enviada ouço sempre que:

1. Texto muito grande

2. Não gosto de ler

3. Falta-me (a colocação correta do pronome foi por minha conta) paciência de ler

4. Não entendo o que você quer dizer

5. Como não tinha foto de mulher pelada nem me dei ao trabalho de ver o resto.

É triste, muito triste.

Escrevo para outros que, como eu, teimam em escrever, e lemo-nos mutuamente como se fossemos uma sociedade secreta.

É triste.

Fosse mais jovem me dedicaria ao futebol, ao pagode ou ao crime...

2011/05/06

NO ÔNIBUS

Quase fim da tarde, o sol ainda está forte no céu, a canícula torra as pessoas nas ruas e dentro do ônibus as cozinha lentamente.

O coletivo está cheio, não há lugar nem em pé. Mas o motorista vai parando de ponto em ponto, mais gente vai subindo e empurrando os demais.

A cada solavanco a “carga” se ajeita.

Nos bancos de trás um casal conversa:

- Já está na hora? - pergunta a mulher.

- Não! Ainda falta, quando chegar a hora eu te aviso - diz o homem.

A avenida a essa hora está cheia e o trânsito engarrafado, não adianta abrir as janelas, não entra ar e quando entra está quente, aumentando ainda mais o calor lá dentro. As pessoas se abanam com o que podem, uns com carteiras, pacotes, até com talões de cheque. Para piorar ainda mais, o fluxo começa a diminuir até que por fim pára de vez.

Os passageiros começam a reclamar, as velhinhas fingem que vão desmaiar, os jovens que se encontram sentados encostam a cabeça nas janelas e simulam dormir, e as crianças nos colos das mães choram.

- E então, está na hora? - torna a perguntar a mulher lá atrás.

- Não, meu bem, ainda não. Fica calma, quando for a hora eu te aviso - responde calmamente o marido dela.

A avenida está coalhada de veículos parados. Somente motos e bicicletas passam por ali. Não muito longe ouve-se a sirene de uma ambulância. Agora os passageiros se agitam, afinal eles querem saber como é que vai ficar essa situação, já que não há espaço para ninguém mais ali. O som aproxima-se, carros tentam mover-se para algum lugar, mas para onde? Aumenta o som da sirene, os passageiros colocam a cabeça para fora, tanto no ônibus, onde aproveitam para respirar um ar mais fresco, como nos carros. A ambulância chega quase voando, passa sobre o canteiro central e segue em frente. Uma velhinha desesperada começa a gritar que vai enfim morrer, pensando assim conseguir uma carona no resgate, mas em vão, todos viram que era charlatanice dela e começaram a vaiá-la.

E vindo lá de trás aquela voz já nossa conhecida:

- Agora já é a hora? Aqui está muito quente, ainda falta muito?

- Não, “môzinho”, já tá quase lá. Güenta mais um pouco só - diz o marido com voz tranqüilizadora.

No banco na frente do casal, um senhor suado e asmático fica tão irritado com as constantes perguntas da mulher querendo saber quanto falta para chegar ao seu ponto, que começa a morder o bigode, torcer os dedos e repetir baixinho a pergunta dela:

- Faltamuitofaltamuitofaltamuito...?

De repente um estrondo seco, e todos os que conseguem ter um mínimo de mobilidade colocam a cabeça para fora do ônibus e vêem que um carro tentando desesperadamente fugir do engarrafamento seguindo a ambulância, atropelou um cavalo que estava pastando no canteiro central, protegendo-se do sol sob a sombra da única árvore que havia ali.

Gritos de indignação contra o cavalo que, onde já se viu?, estava amarrado na sombra, enquanto “nós humanos”, cozinhamos feito sardinhas em lata dentro daquele ônibus.

O motorista fugiu a pé, deixando o automóvel no local, sobre a carcaça da miserável besta que ainda trazia na boca um punhado de grama verde.

A revolta, a inveja domina as pessoas, que vêem o motorista locomover-se em meio àquela “calmaria” em que todos os outros estão presos.

... e vindo lá de trás:

- Benhê ,tá muito quente aqui, ainda falta muito?

Nisso o velhinho, nervoso e sem o lado direito do bigode, explode:

- Mas é claro que falta muito, minha senhora, é claro que falta muito, afinal nós não andamos nem um metro até agora, será que a senhora não pode sofrer em paz como resto de nós sem ficar perguntando a cada cinco minutos se falta muito?

Gritaria outra vez, uns dão razão ao velho, outros acham que foi muita grosseria da parte dele, afinal se ele estava cansado de ouvir a voz da pobre mulher, que descesse e fosse a pé.

Diante do olhar furibundo do marido, o velhinho resolveu mesmo descer e sumir na multidão. A turba aplaudiu e começou a gritar que quem não estivesse satisfeito que seguisse o velho. O marido levantou as mãos e pediu calma, que não se deixassem levar pela fúria, que pensassem bem, afinal o calor estava muito forte e não valia a pena se aborrecer dessa forma, afinal ele mesmo já havia “esquecido” o episódio. E olhando para a mulher, diz:

- Espere mais um pouquinho, que já vai chegar a hora, tá certo? - Disse coçando o bolso.

A mulher balançou a cabeça anuindo mansamente. E então um tranco leve e o movimento começou, à frente os automóveis começavam a movimentar-se, uns transeuntes cristãos de bom coração retiraram o corpo do cavalo para a outra pista, que agora por seu turno começava a engarrafar o trânsito...

Hurras e vivas, as velhinhas começavam a agradecer a Santo Expedito pela graça alcançada, nenês paravam de chorar, os jovens “despertavam” de seu sono providencial, uns ainda aflitos, abanavam-se com mais força, o motorista, relaxado, assoviava um sambinha dos antigos e engatava a quarta marcha.

Agora a coisa ia.

E lá de trás aquela voz nossa conhecida pergunta:

- E agora, benhê, falta muito?

- Não, meu bem, agora é hora - responde com firmeza.

Então ambos levantam-se, as pessoas à sua frente dão passagem para que eles desçam, quando eles falam juntos:

- Todo mundo quieto, isso é um assalto!





Essa é para a Bárbara que curte muito andar de ônibus.

2011/05/05

AS PITONISAS HODIERNAS

Dizem que o dinheiro não traz felicidade, nem compra o amor.

Será verdade?

Senão, vejamos essa propaganda que está colada em todos os postes da cidade, em qualquer bairro, seja ele pobre, miserável (o que mais tem) ou rico.

Parece que independente da classe social do indivíduo, o amor não está fácil.

Quando começamos a precisar de ajuda de cartomantes e outras formas heterodoxas de auxílio para encontrar a cara-metade, o outro pedaço da laranja, acho que a vaca foi para brejo.

Tento imaginar a cara da pessoa entrando no consultório (?)\ barraquinha de lona colorida (?) ou seja lá o que for que a tal vidente do amor use como ponto. Lá está o coração solitário, olhos fundos, pálida\o, mãos tremendo e suadas na mão calejada e cheias de anel de pedras falsas, correntes de ouro, também falso, lenço encardido na cabeça com cabelos tingidos de preto da dita vidente.

Sim a pessoa, tem que estar muito, mas muito desesperada mesmo para se sujeitar a isso.

O houve que com o nosso mundo?

Não me espanto com a propaganda de vidente de amor, videntes que ajudam a ganhar dinheiro (que vontade de tentar...), videntes que enxergam o futuro, nada disso é novidade, elas existem desde que o mundo é mundo.

Mas eu esperava que com o tempo, com a tecnologia, com a facilidade de comunicação, as pessoas se tornassem mais céticas a esse respeito. Só que em vez do ceticismo, tornaram-se cínicas umas, e mais burras outras.

Por favor, não percam tempo com essas falsas pitonisas hodiernas, saiam mais à rua, conversem com seus vizinhos, saiam de seus casulos de egoísmo, e dêem ao próximo a chance de se aproximarem de você.

Quem sabe o amor está ao seu lado e você ainda não percebeu. Aplique o dinheiro que você depositaria nas mãos da velha bruxa em um cinema, uma lanchonete, e quem sabe se tiver sorte, num motel?

Como já cantava o velho George Harrison: O AMOR CHEGA PARA CADA UM.

Pensem nisso.

2011/05/04

Conversas, conversas, conversas...

Duas pessoas conversam.

O local não é lá muito iluminado, as poucas luzes que piscam e brilham pouco ajudam, e os dois trocam impressões meio encabulados e apreensivos com o estranho zumbido que vem de trás das paredes.

O mais inconformado começa a falar, enquanto anda de lado um para o outro


- Veja só. Mais essa no meu currículo. Quando digo que essas coisas me acontecem, ninguém acredita, e ainda dizem que sou exagerado.



- É verdade. Quando você dizia que tudo te acontecia e só faltava ser..., como é mesmo a palavra?

- Abduzido!

- Sim, abduzido. Bom, mas vamos deixar isso pra lá. O que foi mesmo que te aconteceu? Quero os detalhes sórdidos, me conte sem entrelinhas, que ainda estou meio tonto.

- Tá certo. Pela cara vamos ter muito tempo mesmo para isso. Vamos lá. Lembra da Silvinha?

- Ô se lembro. Vinte e três aninhos... Princesinha...

- Pois é. Eu estava de cacho com ela.

- Como? Quando? Com ela???

- Vai me deixar falar ou não?! Assim eu paro de contar. Então, como eu dizia, estava saindo com ela, escrevendo umas bobagens, curtindo uma paixonite daquelas. Tudo no maior sigilo, segredo de estado, coisa de não falar nem em confessionário. Tudo via e-mail, smn e essas bobagens modernas. Na maior inocência. Achando que ninguém iria descobrir. Escrevia coisas melosas, poesias, contava as desgraças da minha vida. Não podia ficar uma noite sem escrever para ela. Planejávamos encontros. Tudo ia às mil maravilhas... Não mudei meus hábitos. E mantinha a linha, vivia na maior calma. Levando a vida na flauta. Não reclamava de nada em casa.. Nem o cachorro percebeu nada, e olha que o Toby é esperto!

- Até...

- Até que a Carla descobriu tudo! TUDO, tudinho.

- Então, como ela descobriu? Telefonema anônimo? Carta anônima? Vizinha te flagrou? A mãe dela ligou? O cunhado...

- Que nada! Entrou no meu e-mail. No meu e-mail.

- E então o que foi que ela fez? No mínimo começou a chorar...

- Chorar? Não! Gritou! Me ameaçou, pegou uma faca e começou a correr atrás de mim.

- E você, o que fez?

- Corri para a rua do jeito que estava. Com um pé calçado e o outro não. Sem camisa, com a calça semi-aberta. Tropeçando, corria e tentava fechar o zíper da calça. Foi quando te encontrei e...

- E fomos abduzidos?

- Isso mesmo. Era só o que me faltava acontecer. E depois dizem que sou exagerado. Agora você é minha testemunha.

O outro levanta os ombros e olha em volta, dando a entender que a sua opinião agora já não adiantava mais nada.

O nervoso puxando o outro pela manga da camisa, leva-o até a janela do disco voador e aponta.

- Olha a Terra, ela é azul mesmo...

- E ficando cada vez mais longe...

O dois balançam a cabeça conformados, enquanto a nave segue pelo espaço, deixando a Terra e seus problemas para trás. Não fosse o vácuo do espaço sideral, ouviríamos os latidos de Toby...