2010/08/18

A MEMÓRIA É UMA DROGA

A memória é uma droga mesmo!

Ouço a Billie, meu clichê, meu lugar comum. Tem um sujeito que desde que o conheci, aos meus dezenove anos, vivia repetindo: - “Você é responsável por quem cativa...” – Por causa dele, passei a ver Saint-Exupéry com certo aborrecimento, outros vivem repetindo feito papagaios: - “O Universo conspira a seu favor!” Ah! Maldita New Age em que vivemos... -“ Maktub!” Berram os leitores de.., vamos deixar isso prá lá!, e segue por aí os lugares-comuns de cada pessoa. Assim sendo não considero ouvir Billie nenhum elitismo, nem nada de mais, é só mais um simples clichê, que bem me serviu para começar o primeiro parágrafo.

Não me lembro bem onde estava quando ouvi as primeiras frases de Billie, mas devia ser dentro do universo de meu apartamento, pois duvido muito que fosse ouvi-la nas ruas. E aquela voz chorosa, imediatamente, remeteu-me ao passado, minha adolescência. Minha juventude, fase penosa da vida, quando nada sabemos, mas mantemos a obstinação dos que se fartam de tanto saber, das espinhas na cara, dos amores eternos, intempestivos e passageiros. Pulamos de amores assim como os beija-flores pulam de flor em flor, somos fúteis, inconseqüentes, superficiais e tolos a não poder mais – mas não se enganem, sofremos.

Pois Billie cantava e as lembranças, como pedras, desmoronaram sobre mim!

Com os versos de Billie as lembranças me vêm fragmentadas, cenas esparsas e sem ordem cronológica, começa assim:

“Estou no banco de trás dum carro, quando vou descer ela me puxa o braço e me beija, beija na boca, um beijo quente, gostoso, bom, um beijo que esperei por muito, muito tempo, e que me veio assim de surpresa, quando já não mais esperava, quando tudo o que seria, se chegasse a ser, seria um beijo no rosto seguido de um: - Feliz Nataaaaaaalllll!

Por uns longos e infindáveis segundos fiquei em estado de graça, sem sentir o chão, o carro, sem parar de pensar em tudo o que seria de nós a partir daquele momento, satisfeito, bestamente feliz, com os lábios dela nos meus, esquecido do pessoal nos esperando na calçada, esquecido da festa, da bagunça que faríamos, pensando num “nós” dali por diante, pensando...
Mas após o beijo ela me empurrou para fora do carro e seguimos atrás do pessoal.

Não consegui me aproximar dela pelo resto da noite sem que alguém se achegasse a nós ou ela simplesmente escapasse de mim. À meia-noite saímos a cantar pelas ruas, todos abraçados, gritando, cantando músicas natalinas, dançando, felizes, mas eu mesmo cantando não tirava aquele beijo da minha cabeça. Por que ela havia me beijado? Tinha enfim reparado em minha insignificância? Depois de tanto me declarar tinha enfim se rendido a meus encantos? Não, encantos eu não os possuía tantos assim, cantava e pensava na ceia, na casa dela não comi quase nada, não queria arriscar perder o gosto dos lábios dela, em volta da mesa procurei várias vezes os seus olhos por trás daqueles óculos de armação fina de metal, mas ela olhava para todos menos para mim. Estaria me evitando ou não dando chance de ninguém perceber nada? Mas se estava disfarçando assim era por descrição ou vergonha? E se fosse vergonha? Fui despertado desse emaranhado de pensamentos por um: - Não vai comer nada? Assim a comida vai esfriar. – vindo da ponta da mesa onde a mãe dela estava.

- Acho que ele está apaixonado. Falou alguém do outro lado da mesa. Acho que devo ter ficado vermelho, se estivesse comendo alguma coisa teria engasgado, tossido, e com um pouco de sorte – a quem estou tentando enganar falando em sorte? – morrido sufocado pela comida. Mas tudo o que consegui foi mesmo continuar vermelho feito um pimentão. Procurei meio desesperado os olhos dela, mas ela estava se atracando uma coxa de peru e nem deu por mim. Para suportar aquela situação comecei a beber, e bebi até a hora de irmos para a rua.

Lá fora, cantando, gritando e tonto, não de dançar, mas de tanto beber, tentava encontrar os olhos dela, queria deles a resposta, saber o porquê daquele beijo, por que eu? Se ela estava somente com vontade beijar alguém que segurasse o braço de outro, que outro – não eu – fosse beijado. Àquela hora nada mais me interessava, tudo que queria era voltar para minha casa, tomar um banho e dormir – sem sonhar – e esquecer tudo isso. Uns poucos segundos acabaram com minha festa de Natal, minha vontade de cantar, minha vontade de viver, com meus sonhos.”

Pela cara acho que consegui esquecer tudo isso, pois foi somente hoje mais de trinta anos depois e ouvindo a Billie que essas lembranças me vieram à mente e enquanto escrevo essas linhas finais, o CD muda de faixa e Billie começa a cantar YOU GO TO MY HEAD...

Resumindo: Melhor sofrer ouvindo Billie Holiday que ouvindo pagode.


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